Muito se discute sobre os efeitos das dietas cetogênicas (aquelas com restrição severa de carboidrato) na saúde metabólica. Nos últimos anos, a discussão se estendeu para os potenciais efeitos benéficos deste tipo de dieta no desempenho esportivo. Muitos a defendem e muitos rechaçam. Mas o que a ciência tem a dizer sobre isso?
O que são dietas cetogênicas?
Dietas cetogênicas são aquelas bastante pobres em carboidrato (<50 g por dia) e ricas em gordura (~75-80% do valor energético total). Elas levam esse nome porque induzem o aumento da produção de corpos cetônicos pelo fígado. Mas por que isso ocorre?
O aumento da produção de corpos cetônicos ocorre em situações de déficit de energia e/ou carboidrato, como após jejum prolongado, dietas restritivas em carboidrato, e exercício físico prolongado. Nessas condições, a diminuição de glicose circulante e o aumento de ácidos graxos circulantes (que vêm do tecido adiposo) levam ao aumento da produção de corpos cetônicos no fígado a partir da metabolização destes ácidos graxos. Estes corpos cetônicos, por sua vez, podem ser utilizados como fonte energética por diversos órgãos do nosso corpo, como coração, músculo esquelético e cérebro.
Por isso, a formação de corpos cetônicos é encarada como uma característica de sobrevivência (do inglês survival trait), já que é uma forma de produzir energia a partir de compostos “alternativos” em situações de baixa disponibilidade de carboidrato e energia. Isso tem particular importância para o cérebro que não é capaz de utilizar gordura como fonte energética, apenas carboidrato (e corpos cetônicos quando da baixa disponibilidade de carboidratos). O aumento da concentração desses compostos inibe, ainda, a utilização de carboidratos e de aminoácidos como fonte energética pelo músculo esquelético, já que o organismo entende que é fundamental preservar estes estoques de modo a garantir a sobrevivência. O resultado disso é o favorecimento da utilização de gordura como substrato energético. Vejam vocês com nosso organismo é muito, mas muito versátil. Aliás, ele é capaz de se adaptar amplamente a condições adversas, incluindo situações crônicas de restrição de carboidrato.
Como as dietas cetogênicas poderiam melhorar o desempenho?
De imediato, recomendar uma dieta cetogênica para um atleta parece um absoluto contrassenso. Há muito se sabe que os carboidratos são a principal fonte de energia para o músculo durante exercícios de alta intensidade, pois fornecem energia de forma mais rápida para o músculo do que a gordura. Se pensarmos na maioria esmagadora das modalidades esportivas, são justamente as ações de alta intensidade que determinam o desempenho físico-esportivo. Isso vale até mesmo para modalidades de longa duração, onde a ultrapassagem, por exemplo, pode definir o vencedor de uma prova (lembre-se desse comentário, voltarei a ele mais adiante).
Contudo, nas modalidades de longa duração, o fato das reservas de carboidrato no corpo serem limitadas parece ser determinante para a fadiga nesses tipos de atividade. E é aí que entra a principal teoria por trás do potencial efeito ergogênicos das dietas cetogênicas. Este tipo de dieta é, irrefutavelmente, capaz de aumentar a utilização de gordura como fonte energética durante o exercício físico.
Um atleta, mesmo que com baixa quantidade de gordura corporal, dispõe de reserva abundante de energia na forma de gordura quando comparada às reservas de carboidrato. Dessa forma, a hipótese seria a de que a otimização da utilização de gordura como fonte energética poderia diminuir a dependência na utilização de glicose como fonte energética, levando à melhora do desempenho em modalidades esportivas de longa duração.
Afinal, as dietas cetogênicas melhoram o desempenho?
Apesar da teoria plausível, não há evidências consistentes de que esse tipo de prática possa levar à melhora do desempenho esportivo. No famoso trabalho de McSwiney et al. (2017), os autores avaliaram atletas que habitualmente consumiam dietas ricas em carboidrato. Estes atletas foram divididos (por opção) em dois grupos: dieta cetogênica (LCKD: 6% de carboidrato e 77% de gordura) e dieta rica em carboidrato (HC: 65% de carboidrato e 20% de gordura). Todos os atletas foram submetidos às dietas específicas e treinamento similar, que envolveu exercícios aeróbios, de força e intermitentes de alta intensidade por 12 semanas.
Como esperado, após a intervenção, os autores relataram maior utilização de gordura como fonte energética no grupo LCKD. Os autores relataram, ainda, perda significativa do peso corporal e do percentual de gordura corporal nos atletas submetidos à LCKD (-6 Kg e -5%) quando comparados ao grupo HC (- 1Kg e -1%), sem alteração da massa magra em ambos os grupos. Convém observar que o grupo LCKD aumentou sua ingestão proteica (1,2 para 1,6 g/Kg de peso/dia) ao passo que o grupo HC fez exatamente o oposto (1,6 para 1,2 g/Kg de peso/dia), o que poderia ajudar a explicar os resultados (ver post). Além disso, o grupo LCKD apresentava maior peso corporal e percentual de gordura corporal no início do estudo, o que também pode ter interferido nos resultados. Em relação ao desempenho, não houve diferença entre os grupos na melhora de rendimento em uma prova contrarrelógio de 100 Km (prova que mimetiza o mundo real).
Após os 100 Km, os atletas foram submetidos a um teste de potência de 3 minutos para mimetizar o sprint final de uma prova. Nesse teste, os atletas do grupo LCKD apresentaram maiores ganhos do que o grupo controle quando esta variável foi reportada relativamente ao peso corporal. Contudo, quando reportada de forma absoluta, não houve diferença entre os grupos.
No mesmo ano, o grupo da Profa. Louise Burke publicou um artigo similar. Neste estudo, os autores avaliaram atletas de marcha atlética de elite ao longo de 3 semanas, divididos em 3 grupos: dieta cetogênica (LCHF: < 50 g/ dia de carboidrato, 78% de gordura e 2,1 g/kg/dia de proteína), dieta rica em carboidrato (HCHO, 8,6g/Kg/dia de carboidrato, 2,1 g/Kg/dia de proteína e 1,2 g/Kg/dia de gordura) e dieta rica em carboidrato, com a mesma composição do grupo HCHO, mas alternância de períodos de baixa e alta disponibilidade de carboidrato (PCHO). Neste período, os atletas também intensificaram seu treinamento. Após a intervenção, o grupo LCHF apresentou aumento significativo da oxidação de gordura durante o exercício (assim como observado no estudo de McSwiney et al.). Em relação ao desempenho, todos os grupos apresentaram melhoras similares da capacidade aeróbia. Contudo, apenas os grupos submetidos à dieta rica em carboidrato apresentaram melhora de rendimento na prova de 10Km (HCHO +6,6% e PCHO +5%), ao passo que o grupo LCHF manteve o rendimento observado antes da intervenção (-1,6%).
Os autores atribuíram essa ausência de melhora de desempenho ao maior custo metabólico (ou seja, pior economia de movimento) e percepção de esforço para uma mesma intensidade (elevada!) no grupo LCHF quando comparado aos grupos HCHO e PCHO. Isso nos remete ao comentário que eu fiz anteriormente. Para ações de alta intensidade, a disponibilidade suficiente de carboidrato parece ser fundamental, uma vez que fornece energia de forma mais rápida para o músculo do que a gordura.
Logo, parece que a maior utilização de gordura como fonte energética durante o exercício induzida pela dieta cetogênica não é capaz de levar à melhora do desempenho em modalidades de longa duração. Ainda, é possível que elas impeçam a melhora de desempenho decorrente do treinamento físico em intensidades mais elevadas (comparativas aquelas observadas em modalidades esportivas no mundo real) em atletas.
Convém ressaltar que muitos mais estudos são necessários para se chegar a conclusões mais robustas e até mesmo para saber se isso também se aplica a praticantes de atividade física. Seria plausível dizer que para atividades de longa duração, porém em intensidades moderadas (praticadas pela grande maioria de nós mortais!), é improvável que observemos quaisquer efeitos prejudiciais ao desempenho decorrentes da dieta cetogênica. Isso, pois, a maior utilização de gordura como fonte energética durante o exercício provavelmente seria capaz de garantir a provisão energética necessária para esse tipo de atividade.
Permaneçamos atentos aos próximos estudos!
Até a próxima!
Para saber mais:
McSwiney FT, Wardrop B, Hyde PN, Lafountain RA, Volek JS, Doyle L. Keto-adaptation enhances exercise performance and body composition responses to training in endurance athletes. Metabolism. 2017 Dec 5. pii: S0026-0495(17)30328-1. doi: 10.1016/j.metabol.2017.11.016.
Burke LM, Ross ML, Garvican-Lewis LA, Welvaert M, Heikura IA, Forbes SG, Mirtschin JG, Cato LE, Strobel N, Sharma AP, Hawley JA. Low carbohydrate, high fat diet impairs exercise economy and negates the performance benefit from intensified training in elite race walkers. J Physiol. 2017 May 1;595(9):2785-2807. doi: 10.1113/JP273230.
Volek JS, Freidenreich DJ, Saenz C, Kunces LJ, Creighton BC, Bartley JM, Davitt PM, Munoz CX, Anderson JM, Maresh CM, Lee EC, Schuenke MD, Aerni G, Kraemer WJ, Phinney SD. Metabolic characteristics of keto-adapted ultra-endurance runners. Metabolism. 2016 Mar;65(3):100-10. doi: 10.1016/j.metabol.2015.10.028.