A teoria da evolução sugere que a seleção natural favorece indivíduos que exibem características orgânicas que levam ao aumento da sobrevivência ou fecundidade. Já se perguntaram, portanto, por que cada vez mais as pessoas têm se tornado obesas, se a obesidade predispõe a uma série de doenças crônicas, redução de fecundidade, prejuízos à saúde e mortalidade? Neste post, abordaremos duas explicações evolutivas para esse aparente paradoxo, que nos fazem refletir sobre a origem histórica da obesidade, um dos maiores desafios de saúde pública em todo o mundo.
No início dos anos 70, o pesquisador Theodosius Dobzhansky escreveu um influente artigo intitulado “Nada na biologia faz sentido exceto à luz da evolução”, enfatizando a impressionante capacidade explicativa da teoria da evolução para quaisquer fenômenos biológicos. Em linhas gerais, a teoria da evolução sugere que a seleção natural favorece indivíduos cujas características orgânicas garantam níveis de sobrevivência e fecundidade superiores. Tendo em vista a crescente prevalência de indivíduos obesos na sociedade moderna, teria sido a obesidade uma característica de exceção que “escapou” da pressão da evolução? Evidentemente, a resposta é não. Há algumas teorias que tentam explicar a origem da obesidade sob o ponto de vista evolucionista. Neste post, abordarei duas delas. O texto é um pouquinho mais longo do que o habitual, mas prefiro assim para não correr o risco de omitir informações importantes.
A visão adaptativa da obesidade
Essa perspectiva sobre a origem da obesidade foi concebida por James Neel em 1962 (originalmente pensada para o diabetes), ganhou diversas repaginações ao longo dos anos e, atualmente, é a mais divulgada e conhecida no mundo acadêmico (eu mesmo escrevi um artigo sobre o tema há alguns anos atrás, com enfoque na atividade física). Essa teoria, conhecida como dos genes poupadores (do inglês thrifty genes), defende que a obesidade é uma adaptação ao ambiente no qual nossos antepassados hominídeos viveram. De acordo com os defensores dessa teoria, o acúmulo de gordura corporal foi uma vantagem aos nossos ancestrais, protegendo-os de períodos de crise de alimentos e, assim, exercendo pressão positiva para a confecção de um genoma poupador. Em outras palavras, indivíduos com maior capacidade de armazenamento de gordura teriam maiores chances de sobrevivência e fecundidade em face da escassez de alimentos, resultante, por exemplo, de uma caça malsucedida ou uma catástrofe natural que afetasse as plantações. Embora bastante conhecida, a teoria dos genes poupadores apresenta falhas consideráveis que põe em xeque sua viabilidade. A principal delas se refere a uma constatação bastante óbvia: fosse a gordura corporal um fator de forte pressão seletiva sobre nossos ancestrais – como reza a teoria –, poderíamos imaginar que todos os seres humanos modernos seriam obesos! Na verdade, cerca de 30 – 35% da população mundial não é obesa. E quem aqui não conhece aquele indivíduo que só come junk food, detesta atividade física e, ainda assim, para desespero dos mais invejosos, continua magrinho?! São observações como essas que mostram que o ser humano ainda resiste ao ambiente obesogênico (baixa atividade física, alto consumo energético). Esse padrão inconstante e variável de obesidade visto na espécie humana difere daquele observado em outras espécies animais, como as aves migratórias. Valendo ainda desse exemplo, sabemos que absolutamente todas as aves migratórias acumulam quantidades elevadíssimas de gordura antes de voos intercontinentais, e a razão para isso é bastante clara: aqueles indivíduos incapazes de acumular gordura simplesmente não teriam energia suficiente para atingirem seu destino e, simplesmente, morreriam durante a jornada. Nesse caso, a seleção é intensa a ponto de extinguir os genes responsáveis pelo acúmulo insuficiente de gordura, tornando todos os indivíduos da espécie “obesos”. Claramente, não foi o que ocorreu com o homo sapiens, sugerindo que a gordura corporal provavelmente não exerceu ação seletiva tão importante a ponto de produzir um genoma poupador.
A visão não adaptativa da obesidade
A perspectiva não adaptativa da obesidade, sistematizada por John Speakman ao longo da última década, leva em conta que nem todos os processos evolutivos sofrem influência exclusiva da seleção natural. De fato, as mutações e os genes aleatórios (do inglês drifty genes) também contribuiriam para a evolução, e poderiam explicar a origem obesidade. Nesse sentido, Speakman propõe um modelo para explicar o controle da gordura corporal, segundo o qual a adiposidade variaria sem grande influência do ambiente entre dois pontos de fortíssima pressão fisiológica. No entanto, caso a gordura corporal ultrapassasse o limite inferior, mecanismos fisiológicos operariam fortemente para recuperar a massa corporal, de modo a evitar morte secundária à inanição; se, por outro lado, a gordura corporal ultrapassasse o limite superior, eventos fisiológicos atuariam de modo a oxidar gordura e retomar a massa corporal, evitando, assim, riscos de predação por consequência de uma menor mobilidade. Esse foi o ambiente no qual nossos antepassados mais longínquos viveram, há cerca de 6 a 2 milhões de anos. Com a evolução do comportamento social, contudo, há 2 milhões de anos atrás, vários indivíduos passaram a viver em conjunto, protegendo-se de ataques de predadores. Além disso, a descoberta do fogo e das armas permitiu aos nossos ancestrais maior sucesso no confronto contra predadores. Nesse cenário, mesmo indivíduos mais pesados e menos ágeis poderiam se livrar da predação desde que municiados de armas adequadas. Dessa forma, a importância da regulação do limite superior da adiposidade/massa corporal perdeu significância evolutiva. Como não havia pressão seletiva, os genes que regiam tal controle foram sujeitos a mutações e aleatorizações (random drift) heterogêneas, com potencial de predisposição variável ao acúmulo excessivo de gordura. Isso explicaria porque alguns indivíduos são propensos à obesidade enquanto outros parecem ser imunes a ela, mesmo vivendo sobre o mesmo ambiente obesogênico.
Resumo da ópera e a minha visão
Quando traçamos cenários históricos a fim de estabelecermos causas evolutivas para fenômenos biológicos, como a obesidade, somos obrigados a considerar questões genéticas, ecológicas, clínicas, demográficas, antropológicas, comportamentais, etc. Nem sempre temos como assegurar que todos as inferências assumidas são, de fato, inteiramente acuradas. Especificamente em relação à origem evolutiva da obesidade, é impossível ficar “em cima do muro”, pois as visões discutidas neste post partem de premissas fundamentalmente antagônicas e, portanto, são incompatíveis. Por exemplo, não é possível assumir que um gene associado à obesidade foi “produzido” por aleatorização genética (visão não adaptativa) e, ao mesmo tempo, sofreu pressão seletiva (visão adaptativa). Embora não haja um consenso acerca da origem evolutiva da obesidade, diante de tudo que foi discutido, hoje em dia tendo a crer que essa condição é um resultado não-adaptativo da evolução, em contrapartida à proposição de que uma pressão seletiva gerou uma espécie humana com genoma poupador (lembrando que já defendi o contrário num outro momento; ver referência na lista abaixo). E vocês, o que acham? E viva Darwin!
Até a próxima!
Bruno Gualano - Blog Ciência inForma
Para conhecer mais sobre o tema, leia:
Neel JV. 1962. Diabetes mellitus: a “thrifty” genotype rendered detrimental by “progress”? Am. J. Hum. Genet. 14:352–53.
Speakman JR. 2013. Evolutionary Perspectives on the Obesity Epidemic: Adaptive, Maladaptive, and Neutral Viewpoints. Annu. Rev. Nutr. 33:289–317.
Gualano, B; Tinucci T. 2011. Sedentarismo, exercício físico e doenças crônicas. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (Impresso), 25: 37-43.