Quem nunca “assaltou” a geladeira na madrugada? A ingestão de alimentos à noite é alvo de grande discussão. Recentemente a ciência tem olhado para isto com um viés diferente do usual. Confira o post de hoje para saber mais.
Ingerir (ou não) alimentos à noite, em especial antes de dormir, tem sido alvo de debate por anos. Há décadas que se propaga a ideia de que tal prática possa ter impacto negativo sobre a saúde e a composição corporal. De fato, há evidências que demonstram variações circadianas na tolerância à glicose, no esvaziamento gástrico, na secreção hormonal e até mesmo no gasto calórico que dão suporte à inibição desta prática nutricional. Além disso, não só o efeito térmico do alimento (gasto calórico relacionado ao processo de digestão e metabolização do alimento) como também a capacidade de induzir saciedade de uma refeição parecem ser menores à noite em comparação ao período diurno (em reposta a uma refeição de mesma composição de nutrientes e calorias). Ainda em suporte à redução da ingestão alimentar noturna, estudos epidemiológicos mostram que indivíduos que trabalham em ciclo invertido apresentam maiores índices de obesidade e de risco cardiometabólico. Estes estudos também mostram que indivíduos que fazem ingestão alimentar noturna normalmente consomem 50% ou mais das suas calorias diárias na refeição após o jantar. Também não é incomum (embora não seja uma regra) que indivíduos que façam grandes refeições após o jantar também ingiram mais calorias, gorduras e carboidratos em comparação àqueles que não o fazem.
Embora haja evidências de que esta prática nutricional predisponha o ganho de peso e consequente aumento de riscos à saúde, estudos recentes têm sugerido que estes desfechos estão relacionados à escolha nutricional. Alguns dados apontam para um efeito positivo da ingestão noturna de refeições pequenas, de menores densidades calóricas (< 200 kcal) e concentradas em um único nutriente (ao invés de uma refeição de composição mista) em diferentes populações.
Em jovens ativos, um grupo de pesquisadores holandeses demonstrou que a ingestão noturna de um suplemento proteico resultou em maior disponibilidade de aminoácidos durante o período noturno e, consequentemente, em maior taxa de síntese proteica muscular. O mesmo grupo mostrou, mais tarde, que esta prática também aumentou a massa muscular e a força destes indivíduos. É fundamental destacar que a conclusão sobre a eficácia deste método é limitada pela diferença na oferta de proteínas entre os grupos placebo e proteína (1,3g/kg vs. 1,9g/kg de peso, respectivamente). Ou seja, não é possível dizer se o efeito se deve à ingestão noturna, ou ao simples fato de se ingerir mais proteína ao final de um dia. Apesar disso, cabe também destacar que o grupo que consumiu o suplemento à noite não apresentou nenhum efeito adverso relacionado à esta prática.
Já discutimos (em um post anterior) o papel da adequação da ingestão de proteínas em indivíduos idosos. Nestes, estratégias multimodais de atenuação da sarcopenia são de extrema valia e, assim, a ingestão de proteínas à noite pode ser uma alternativa interessante. Atualmente, um único estudo pode ser encontrado neste sentido. Os autores demonstraram que 40g de proteína (caseína) não apenas eram adequadamente digeridas e absorvidas como também eram capazes de induzir aumentos de síntese proteica em idosos, constituindo uma estratégia nutricional promissora (e digna de investigação) em populações suscetíveis à perda de massa muscular.
Por fim, em obesos, ao contrário dos efeitos negativos de refeições noturnas ricas em calorias e gorduras, a ingestão noturna de snacks menos calóricos e pobres em gordura tem se mostrado benéfica. Um estudo de curta duração (4 semanas) com indivíduos obesos demonstrou que o consumo de uma refeição pós-jantar composta por uma porção de cereal e leite magro (< 200 kcal) resultou em redução da ingestão calórica diária. Embora preliminar e carente de sustentação mais sólida, parece que a oferta de um snack estruturado pós-jantar possa ser capaz de diminuir o consumo calórico durante o jantar.
De maneira aguda, a ingestão noturna de carboidratos ou proteínas (~ 150 kcal) foi capaz de reduzir a saciedade no dia seguinte em indivíduos obesos. Embora interessante, é importante notar que ambos nutrientes também induziram um pequeno (mas significante) aumento nas concentrações de insulina na manhã seguinte, sinalizando para um possível efeito negativo desta prática nesta população. A inclusão de um programa de atividades físicas em associação a esta prática nutricional pode ser uma forma interessante de minimizar este efeito. Entretanto, o suporte científico para esta afirmação ainda é incipiente. Dois estudos foram conduzidos neste sentido. Em um deles, os autores compararam o consumo noturno de caseína, whey ou carboidrato combinado com um programa de exercício físicos em indivíduos com sobrepeso ou obesidade. Os autores encontraram um efeito positivo sobre a composição corporal e função muscular em todos os grupos. Embora o grupo caseína tenha reportado maior saciedade pela manhã do que os demais grupos, talvez o dado mais importante seja que o aumento das concentrações de insulina observado agudamente foi revertido pelo programa de exercícios. O segundo estudo usou um desenho similar e observou que apenas os grupos suplementados com proteína apresentaram redução da pressão arterial e da rigidez arterial quando comparados ao grupo carboidrato.
Embora as evidências ainda sejam preliminares e careçam de maior (muito maior) sustentação científica, a ingestão de pequenas porções de alimento (em especial de proteína) à noite (pós-jantar e mais próximas da hora de dormir) parece induzir respostas fisiológicas positivas em diferentes populações.
Até breve.
Prof. Dr. Hamilton Roschel - Blog Ciência inForma
Sugestão de leitura:
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