Ao se deparar com o título você deve estar confuso. Concordo! É preciso contextualização...então vamos lá!
Não é estranha para a maioria da nossa audiência a noção de que o exercício (em especial o exercício de força) causa microlesões na ultraestrutura muscular, correto? Comumente nos referimos a este fenômeno como dano muscular induzido pelo exercício. Caracterizado por sintomas transitórios como dor muscular tardia (que perdura por alguns dias após a sessão de exercícios), diminuição de amplitude articular, diminuição de força entre outros, o dano muscular é uma consequência “natural” do exercício e deve ser diferenciado de uma lesão muscular incapacitante, que requer intervenção terapêutica, por exemplo. Provavelmente a maioria de vocês já provou dos seus efeitos quando iniciaram a prática de musculação ou quando voltaram a treinar após um período parado. Aquela dorzinha muscular na hora de sentar/levantar, ou de subir/descer um lance de escadas, sabe? É disso que estamos falando...
Se vocês já passaram por isso certamente também já perceberam que após algumas sessões de treinamento esses sintomas simplesmente deixam de se manifestar, não é mesmo? Isso se deve ao que chamamos de “efeito da carga repetida” ou “efeito protetor da carga”. A literatura reporta que ao ser exposto à um estímulo que causa dano muscular, o organismo se adapta, de forma que estímulos subsequentes induzam danos musculares cada vez menores ou até insignificantes.
O conceito acima é contraditório a um paradigma que perdurou por muito tempo (e ainda está impregnado em muitos profissionais da área), o qual assume que a hipertrofia muscular induzida pelo treinamento de força é dependente das tais microlesões induzidas pelo exercício. Parece claro que, ao entendermos o conceito de efeito protetor da carga, a lógica para o paradigma exposto fica, pelo menos, fragilizada. Sobre o assunto, por favor, recorra a este vídeo, no qual Gui e eu discutimos o assunto com base em resultados recentes produzidos aqui em casa, na USP.
Pois bem, juntando tudo que foi dito (e visto...ASSISTAM o vídeo!!!), voltemos à tara da minimização do dano muscular induzido pelo exercício. Me parece no mínimo estranho a quantidade de estudos dedicados ao possível papel de diferentes suplementos na “minimização” do tal dano muscular. HMB, BCAA, carboidratos, whey e combinações das mais variadas têm sido estudados quase sempre com o mesmo viés: efeito do suplemento x no dano muscular após uma sessão aguda de exercícios de força em indivíduos não treinados... Ora, mais uma vez, se sabemos que o tal efeito protetor da carga existe e que o dano será minimizado nas próximas sessões, qual a vantagem de se suplementar alguém com vistas meramente à minimização do dano na PRIMEIRA sessão de treino? Será que isso realmente se justifica sobre o ponto de vista da prática clínica? Já imaginou o primeiro dia de uma senhora idosa na academia:
- Muito bem, Dona Mércia (não sei por que Mércia...não amolem), tá aqui o seu BCAA e a sua ficha de treino...
Surreal, não? Primeiro porque teríamos que assumir que o BCCA (ou qualquer outro suplemento) tem, realmente, um papel “protetor” contra o dano induzido pelo exercício, o que não é verdade; segundo, porque caso fosse verdade, isso teria que conferir alguma vantagem “real” para a Dona Mércia. Para quem quiser argumentar que diminuir a dor tardia após a primeira sessão possa ser desejável para o engajamento de um indivíduo a um programa de exercícios, eu o convido a pensar na adequação do estímulo à capacidade do participante, considerando a progressão gradual do volume e intensidades do treino (uma vez que estes podem ser determinantes para o grau de dano, particularmente em indivíduos não treinados).
A ideia deste post não é a de discutir os possíveis mecanismos propostos pelos que se debruçam sobre o tema, tampouco os detalhes dos estudos que existem na literatura, mas a de fazê-los refletir sobre a necessidade de se colocar qualquer estratégia nutricional em perspectiva. Por vezes a ciência traz dados (embora não seja exatamente este o caso) que a princípio parecem super aplicados, tornando-os tentadores aos olhos do profissional, mas que quando colocados sob a lupa de um melhor julgamento, com vistas à contextualização clínica, se tornam absolutamente irrelevantes. Assim, talvez a mensagem final do post seja: pratiquem o senso crítico de vocês.
Até a próxima,
Prof. Dr. Hamilton Roschel - Blog Ciência InForma
Para saber mais:
Resistance training-induced changes in integrated myofibrillar protein synthesis are related to hypertrophy only after attenuation of muscle damage. Damas F, Phillips SM, Libardi CA, Vechin FC, Lixandrão ME, Jannig PR, Costa LA, Bacurau AV, Snijders T, Parise G, Tricoli V, Roschel H, Ugrinowitsch C. J Physiol. 2016 Sep 15;594(18):5209-22. Susceptibility to Exercise-Induced Muscle Damage: a Cluster Analysis with a Large Sample. Damas F, Nosaka K, Libardi CA, Chen TC, Ugrinowitsch C. Int J Sports Med. 2016 Jul;37(8):633-40.
Post-exercise branched chain amino acid supplementation does not affect recovery markers following three consecutive high intensity resistance training bouts compared to carbohydrate supplementation Wesley C. Kephart , Petey W. Mumford, Anna E. McCloskey, A. Maleah Holland, Joshua J. Shake, C. Brooks Mobley, Adam E. Jagodinsky, Wendi H. Weimar, Gretchen D. Oliver, Kaelin C. Young, Jordan R. Moon, Michael D. Roberts. Journal of the International Society of Sports Nutrition (2016) 13:30 (Epub ahead of print).
Effects of combined β-hydroxy-β- methylbutyrate (HMB) and whey protein ingestion on symptoms of eccentric exercise-induced muscle damage Minayuki Shirato, Yosuke Tsuchiya, Teruyuki Sato, Saki Hamano, Takeshi Gushiken, Naoto Kimura, Eisuke Ochi. Journal of the International Society of Sports Nutrition (2016) 13:7 (Epub ahead of print).