A cena pode lembrar filmes de ficção científica, mas acreditem: já existem empresas que vendem testes genéticos para crianças cujos pais anseiam a glória esportiva (para os filhos, claro). Cientistas paramentados com avental, luvas e um arsenal completo de acessórios gentilmente raspam a boca de crianças, coletando suas células. Ao levá-las ao laboratório, eles conseguem, utilizando métodos relativamente simples, isolar o material genético contido em seus núcleos. O objetivo? Identificar genes que predizem o sucesso em esportes de força e potência, ou de resistência aeróbia. Seria ótimo se fosse assim tão simples. Mas pode ser trágico.t
Associação não é predição
Sim, existem diversos estudos que repetidamente demonstram que alguns genes estão associados ao desempenho em tarefas de força e potência, ou de resistência aeróbia (endurance). Para ser mais exato, não é o gene que está associado, mas sim uma versão específica do gene. Alguns genes apresentam versões que podem “melhorar” a força, potência ou massa muscular, ou versões que podem “melhorar” a resistência ou endurance. Mas “melhorar” não é a palavra correta, embora muito comumente utilizada. Na verdade, os estudos mostram associações. Logo, não é possível estabelecer relações de causa-efeito. Portanto, não é correto dizer “ter tal versão desse ou daquele gene” fará com que seu filho seja mais forte ou que corra mais que aquele colega que tem a outra versão do gene. A relação entre genética e desempenho físico não é determinística. É perfeitamente possível que uma criança tenha versões de genes “desfavoráveis” para endurance e, mesmo assim, seja um grande corredor na idade adulta. Muitos estudos mostram isso.
Um gene, dois genes, 25 mil genes... e ainda é pouco para um fenômeno multifatorial
O que faz alguém ser campeão mundial? O que faz alguém ser um superatleta? O que faz alguém ser o melhor de todos os tempos? Será que atletas de elite nascem prontos? Com certeza não! É necessário muito treino, muito trabalho, e também muita sorte para que alguém chegue ao topo do pódio. Sorte porque é necessário haver uma combinação de fatores para que uma pessoa desenvolva sua capacidade esportiva ao extremo. É preciso estar entre familiares que incentivem desenvolvimento esportivo desde cedo; é preciso estar inserido em uma cultura em que haja ídolos, oportunidades de desenvolvimento, bons treinadores, bons colegas de treino; é preciso estar em um contexto socioeconômico em que o esporte seja desenvolvido, e que seja economicamente viável fazer do esporte uma profissão. Por fim, ter um “bom perfil genético” também ajuda. Mas dentro de um universo de 25 mil genes (número aproximado de genes que formam o genoma humano) e incontáveis versões para cada um deles, como saber qual combinação de versões é a melhor para cada tipo de esporte? A ciência ainda está longe, muito longe dessa resposta... Conhecemos uma porção muito pequena (cerca de 25 genes) de nosso genoma que pode, de alguma forma, afetar o desempenho. Mas será que identificar um, dois ou vinte e cinco genes realmente vai ter algum valor na identificação de futuros bons atletas? Pense nisso lembrando que os fatores genéticos são apenas um, dentre inúmeros outros, que fazem uma criança se tornar um campeão no futuro.
O que fazer com o resultado de um teste genético?
Essa é outra pergunta que os pais ou médicos devem se fazer antes de submeter seus filhos a testes como esses. Digamos que a empresa esteja testando um gene cuja versão A esteja associada com força e a versão B esteja associada com endurance. Se a criança for AA (lembrem-se, possuímos duas cópias, ou alelos, de cada gene), a conclusão é fácil: que seja corredor de 100 m. Se a criança for BB, continua fácil: que seja maratonista ou triatleta. Mas e se for AB? Percebam que a conclusão “faça este ou aquele esporte” é bastante arbitrária se tomada levando-se em conta apenas o perfil genético. Num cenário um pouco mais complexo, em que a empresa testa múltiplos genes (10, digamos), a chance de todos eles apontarem para força ou todos apontarem para endurance é extremamente baixa. Isso significa que, na maioria esmagadora das vezes, lidaremos com informações conflitantes. Será que esse tipo de informação realmente nos ajudará a decidir o melhor esporte para seu filho?
Não adivinhe, desenvolva
O próprio conceito de detecção de talento tem sido revisto. Em vez selecionar os promissores e excluir os “sem esperança”, justo seria que todas as crianças tivessem oportunidades de explorar ao máximo as habilidades, talentos e aptidões, sejam elas físicas, desportivas, intelectuais e etc. Forçar uma criança a praticar um esporte que não genuinamente ama pode levá-la rapidamente a desistir daquele esporte. É o que os cientistas chamam de burn-out. Nesse sentido, os testes genéticos podem mais atrapalhar do que ajudar. Da mesma forma, identificar um “perfil genético ideal” pode ter impactos fortes sobre a criança e seus pais, aumentando a pressão, a cobrança por resultados, por dedicação excessiva aos treinos, o que pode resultar em especialização precoce. Isso poderia ter efeito contrário ao esperado: em vez potencializar talentos, essas crianças poderiam ser tolhidas de suas chances de tornarem-se bons atletas no futuro. É compreensível que estejamos ansiosos para que os avanços da ciência traduzam-se em melhoras “visíveis” em nosso cotidiano. Mas precisamos estar atentos para quando “o bom e velho” continuar a ser a melhor opção.
Prof. Dr. Guilherme Artioli - Blog Ciência Informa
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